domingo, 8 de junho de 2014

A FRONTE







Era início da noite quando uma notícia se instalou na sua fronte, não sabia se era algo inventado pela sua inconsciência desejosa ou efetivamente uma notícia do real mundo exterior. Alcide mergulhou num tormento desejoso de alucinações, o desejo de realidade também o condenava. A indistinção fronteiriça era ainda o que mais perturbava. A noite se erguia com mais força e o espelho desfragmentava, conduzindo suas ações a um mundo radioso de veracidade. A distinção se efetivava já quando corria a madrugada. A noite foi embora e deixou um rastro de tortura. Alcide era agora uma manhã de pura realidade. As suas ações se desfrutavam de razão, da razão pura e transcendental. Alcide era agora nulo desejo.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O DENTE

O corpo pesava quando acordara. O peso do corpo, no entanto, refletia a intensa dor de ter um dente quebrado ao meio. José acordou no meio da noite com uma crise alérgica e sudorípara. Espirava aos borbotões e aquele caldo espesso e incolor escorria pelas suas narinas, se expandiam pelo cobertor. Levantou. Cuspiu no vaso sanitário e persistiu no sono. Logo depois de ter abortado a inglória missão de abraçar os pesadelos que se certamente descortinariam seu sono, levantou. José sentia que não sabia definir se sentia ódio às avessas, se agonia inversa ou desespero.  Abriu a mão e segurou entre os dedos quatro comprimidos de calmantes diversos e coloridos. Parecia que aquele momento escorria pela realidade e efetivava-se num paralelo lisérgico qualquer.
José acordou, levantou e sentia uma dor de cabeça. Na porta alguém chamava, era alguém difícil, era um estranho de cor amarela esverdeada, a luz não deixava José perceber, mas o dente ao meio parecia ser o único encravado em sua boca, era forte, intenso e não se deixava esquecer. Aquele homem entrou na penumbra da sua casa, não era um ser agradável, seu corpo era de fato deformado inconcluso, quase obtuso. A garganta de José também começara a arder, uma nuvem de poeira subia, o seu espaço já não era. José tinha a boca agora aberta, seu dente latejava, sua garganta postulava, precisava voltar a ser o que escondia.

O estranho pisou no corpo fragilizado de José e escrevia como uma caneta vermelha palavras  que não compreendia, aquele ser de corpo deformado agora prendia as mãos e o esmurrava. José não conseguira ver os olhos, mas os percebia vermelho em fogo. José sentia que precisava e que tendia a morte e não...... 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A nudez

Lera que toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. Ficou pensando naquilo por tempos. E a citação não parava por aí, seguia, como que diluindo-a: toda concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo. Ela era o ser fechado. Ela era a estrutura a ser destruída. Ela era a que no jogo do amor sujava as mãos, mas apassivava-se, como que destruída mesmo, como que abatida. E foi por isso que disse que naquele momento não havia nada a dizer.
E não cabiam palavras, pois havia a nudez. Havia a nudez dele. A nudez que ela já sonhara e que uma noite pensou até em mordê-la. Comer aquela nudez pra que o gosto de tudo lhe ficasse também por dentro quando tudo acontecesse. E havia a nudez dela. A nudez era, ali, um estado de comunicação: era um desapossar-se para entrar numa desordem do corpo que já não era mais conforme de si, mas uma oferenda. Ela, estrutura a ser destruída, era o sacrifício. Ela queria se dar. Ela se dava.
E por isso seu rosto ficou rubro. E por isso as mãos foram em concha para a cara. E por isso, minutos antes, ficara atordoada sem saber como reagir à possibilidade de um beijo. Não, ela não era mais uma menina de quinze anos. E aquilo não era um comportamento regressivo. Era o pressentimento de uma concretização: era a primeira vez, em anos, que ela dava passagem para o tão íntimo de si até onde o coração faltava. Sim, ela se dera. E fora cravada, atingida, abatida: o que lhe era rígido, de pedra, estrutura fechada, foi destruído. Não havia nada para dizer. Tudo ia ser pouco.
Quando se despediram, ela pensou que ia doer-lhe a descontinuidade. Porém, enquanto ele descia as escadas, ela olhava pelo olho mágico sua imagem diminuindo, sumindo, sem promessas, sem direção para um futuro que não fosse o desejo de boa sorte – dela para ele - e de adeus – dele para ela. Uma canção tocava ao longe – ela mesma escolhera - e um acontecimento urgente se dava: ela nascia. Ela nascia outra. Houve então a concretização: a destruição do que era fechado e rígido e que ninguém rompia há tempos porque ela mesma não permitia. Ela que nascera para as aberturas. E que sabia que isso lhe causava chagas. Mas seria assim sempre. E não havia nada para dizer. E isso era muito.





sexta-feira, 23 de maio de 2014

EM ALGUM LUGAR

Antônio era um bom menino.A face era plácida, mas marcada por um fio de ruga que rasgava a testa. Seus gestos ténues denunciavam uma inconcretude, uma falta de terra. Era uma mistura heterogênea entre água e gás carbônico, era uma bolha que se formava como se tudo aquilo fosse um exoesqueleto que emanava de sua pele. Antônio ardia a face. Era um bom menino que virou do avesso. foi sugado pela própria bolha que explodia. Antônio virara borboleta.