sexta-feira, 30 de maio de 2014

O DENTE

O corpo pesava quando acordara. O peso do corpo, no entanto, refletia a intensa dor de ter um dente quebrado ao meio. José acordou no meio da noite com uma crise alérgica e sudorípara. Espirava aos borbotões e aquele caldo espesso e incolor escorria pelas suas narinas, se expandiam pelo cobertor. Levantou. Cuspiu no vaso sanitário e persistiu no sono. Logo depois de ter abortado a inglória missão de abraçar os pesadelos que se certamente descortinariam seu sono, levantou. José sentia que não sabia definir se sentia ódio às avessas, se agonia inversa ou desespero.  Abriu a mão e segurou entre os dedos quatro comprimidos de calmantes diversos e coloridos. Parecia que aquele momento escorria pela realidade e efetivava-se num paralelo lisérgico qualquer.
José acordou, levantou e sentia uma dor de cabeça. Na porta alguém chamava, era alguém difícil, era um estranho de cor amarela esverdeada, a luz não deixava José perceber, mas o dente ao meio parecia ser o único encravado em sua boca, era forte, intenso e não se deixava esquecer. Aquele homem entrou na penumbra da sua casa, não era um ser agradável, seu corpo era de fato deformado inconcluso, quase obtuso. A garganta de José também começara a arder, uma nuvem de poeira subia, o seu espaço já não era. José tinha a boca agora aberta, seu dente latejava, sua garganta postulava, precisava voltar a ser o que escondia.

O estranho pisou no corpo fragilizado de José e escrevia como uma caneta vermelha palavras  que não compreendia, aquele ser de corpo deformado agora prendia as mãos e o esmurrava. José não conseguira ver os olhos, mas os percebia vermelho em fogo. José sentia que precisava e que tendia a morte e não...... 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A nudez

Lera que toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. Ficou pensando naquilo por tempos. E a citação não parava por aí, seguia, como que diluindo-a: toda concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo. Ela era o ser fechado. Ela era a estrutura a ser destruída. Ela era a que no jogo do amor sujava as mãos, mas apassivava-se, como que destruída mesmo, como que abatida. E foi por isso que disse que naquele momento não havia nada a dizer.
E não cabiam palavras, pois havia a nudez. Havia a nudez dele. A nudez que ela já sonhara e que uma noite pensou até em mordê-la. Comer aquela nudez pra que o gosto de tudo lhe ficasse também por dentro quando tudo acontecesse. E havia a nudez dela. A nudez era, ali, um estado de comunicação: era um desapossar-se para entrar numa desordem do corpo que já não era mais conforme de si, mas uma oferenda. Ela, estrutura a ser destruída, era o sacrifício. Ela queria se dar. Ela se dava.
E por isso seu rosto ficou rubro. E por isso as mãos foram em concha para a cara. E por isso, minutos antes, ficara atordoada sem saber como reagir à possibilidade de um beijo. Não, ela não era mais uma menina de quinze anos. E aquilo não era um comportamento regressivo. Era o pressentimento de uma concretização: era a primeira vez, em anos, que ela dava passagem para o tão íntimo de si até onde o coração faltava. Sim, ela se dera. E fora cravada, atingida, abatida: o que lhe era rígido, de pedra, estrutura fechada, foi destruído. Não havia nada para dizer. Tudo ia ser pouco.
Quando se despediram, ela pensou que ia doer-lhe a descontinuidade. Porém, enquanto ele descia as escadas, ela olhava pelo olho mágico sua imagem diminuindo, sumindo, sem promessas, sem direção para um futuro que não fosse o desejo de boa sorte – dela para ele - e de adeus – dele para ela. Uma canção tocava ao longe – ela mesma escolhera - e um acontecimento urgente se dava: ela nascia. Ela nascia outra. Houve então a concretização: a destruição do que era fechado e rígido e que ninguém rompia há tempos porque ela mesma não permitia. Ela que nascera para as aberturas. E que sabia que isso lhe causava chagas. Mas seria assim sempre. E não havia nada para dizer. E isso era muito.





sexta-feira, 23 de maio de 2014

EM ALGUM LUGAR

Antônio era um bom menino.A face era plácida, mas marcada por um fio de ruga que rasgava a testa. Seus gestos ténues denunciavam uma inconcretude, uma falta de terra. Era uma mistura heterogênea entre água e gás carbônico, era uma bolha que se formava como se tudo aquilo fosse um exoesqueleto que emanava de sua pele. Antônio ardia a face. Era um bom menino que virou do avesso. foi sugado pela própria bolha que explodia. Antônio virara borboleta.